quarta-feira, 22 de abril de 2009

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Sementes da educação
“Plantar as raízes da universidade nas comunidades pobres para que haja um diálogo entre os movimentos sociais comunitários e o saber acadêmico. Este é nosso desafio.” “Esses jovens não têm previsão de ingresso no mercado de trabalho, porque não têm escolaridade nem qualificação profissional. São aliciados pelo narcotráfico, pelo jogo do bicho etc. É um ambiente difícil para se desenvolver um trabalho comunitário.”

-->José Carmelo Braz de Carvalho (Educação, PUC-Rio), criador do movimento Raízes Comunitárias, tem o sonho de constituir uma rede de apoio aos cursos comunitários que preparam adolescentes de baixa renda para o ensino técnico. O projeto de Carmelo é fazer dialogar iniciativas sociais com o saber acadêmico produzido na universidade. Para cumprir este objetivo, pretende contar com a colaboração voluntária de graduandos da PUC-Rio, entre eles os 1.300 bolsistas vindos de comunidades carentes.
Carmelo organizou os livros Classes comunitárias pré-técnicas e pré-profissionais, ao lado de Merise Santos de Carvalho, e Cursos pré-vestibulares comunitários: espaços de mediações pedagógicas, junto com Hélcio Alvim Filho e Renato Pontes Costa, ambos publicados como e-books pela Editora PUC-Rio. Desenvolve projetos educacionais na PUC-Rio desde 1998, entre eles o Projeto Meio-dia, que oferece classes de alfabetização, ensino fundamental e ensino médio para adultos na universidade, na hora do almoço.
O professor acredita que os cursos pré-técnicos comunitários são importantes para formar mão-de-obra qualificada, necessária para o desenvolvimento do país. Além disso, dão perspectivas profissionais a adolescentes descrentes de comunidades pobres. Nesta entrevista, José Carmelo Braz de Carvalho comenta o panorama da educação no Brasil, fala sobre sua trajetória profissional e conta quais são seus próximos projetos.
Editora PUC-Rio: Como é, hoje, a participação de técnicos no mercado de trabalho brasileiro?
José Carmelo: Temos um fosso no desenvolvimento no país. O Brasil viverá um estrangulamento. Faltarão recursos humanos para o crescimento, sobretudo na área técnica. Em 1976, o Ministério do Planejamento fez um plano de desenvolvimento e constatou um fenômeno que continua até hoje: o Brasil carece de quadros técnicos bem formados. Naquela época, os alunos da rede federal de ensino técnico já não iam para o mercado de trabalho, mas para o ensino superior. No Brasil, a desvalorização financeira e de status do técnico sempre provocou esse êxodo de alunos. De um lado, as escolas técnicas são consideradas trampolim para os cursos universitários mais competitivos. De outro, temos os alunos de comunidades pobres, cuja formação é extremamente carente; assim, para eles, é muito difícil ter acesso ao ensino técnico.
Editora PUC-Rio: O que vem sendo feito para aumentar o acesso de jovens de comunidades pobres ao ensino técnico?
José Carmelo: O governo Lula vem incentivando a ocupação de vagas do ensino técnico e profissional por esses alunos. O Senai, o Senac, o Sesi e o Sesc – os 4 S – foram criados por Getúlio Vargas para atender os filhos dos trabalhadores. Mas, nos últimos 20 anos, o Senai vem cobrando pelos seus cursos. Isso inviabilizou o acesso de jovens e trabalhadores pobres aos cursos. O governo Lula tentou mudar os 4 S, mas não conseguiu. Eles são muito fortes, têm por trás de si a Confederação Nacional da Indústria e a Confederação Nacional do Comércio. Porém, em julho de 2008, foi feito um acordo em que ficou acertado que, gradativamente, até 2014, dois terços das vagas dos cursos do Senai e do Senac serão de gratuidade. Além de o governo reservar 66% das vagas para alunos de comunidades pobres e jovens de baixa escolaridade, ele está criando uma política de cotas na rede federal de ensino técnico. Está sendo multiplicado o número de escolas técnicas no Brasil, que serão agora 560. E, do mesmo modo que ocorre na UERJ e nas universidades estaduais que definem cotas, 50% das vagas da rede federal de ensino técnico profissional serão destinadas a alunos oriundos de escolas públicas com lacunas na sua formação. Corremos um risco: serão criadas, provavelmente, um milhão de vagas. Mas como elas serão ocupadas e aproveitadas, se os estudantes vêm da escola fundamental com lacunas sérias? Nosso trabalho vem somar-se à política de inclusão que o governo federal está promovendo.
Editora PUC-Rio: Como surgiram as classes pré-técnicas comunitárias?
José Carmelo: Elas surgiram há dez anos. Existe uma figura bastante emblemática em relação à ação afirmativa e às vagas gratuitas no ensino superior, o franciscano Frei Davi Santos. Ele desencadeou, na Baixada Fluminense, no início da década de 1990, cursos pré-vestibulares comunitários. Esses cursos ganharam força e se espalharam com rapidez. Há onze anos, em 1998, Frei Davi já desafiava a Juventude Franciscana. Ele dizia: “Como nós podemos ter, em Nilópolis, uma escola técnica de alto nível, que atende a todos os alunos, exceto os alunos das comunidades pobres de Nilópolis?” Os rapazes da Juventude Franciscana organizaram-se e começaram a primeira classe comunitária pré-técnica (CCPT). A partir desse movimento, o mesmo projeto foi desenvolvido no Canal do Anil, na Cidade de Deus e no Rio das Pedras.
Editora PUC-Rio: Como começou seu apoio às classes pré-técnicas comunitárias?
José Carmelo: Naquele momento, em 1998, os pré-vestibulares comunitários e as políticas de inclusão no ensino superior já estavam consolidados. A luta já estava ganha. Por outro lado, a luta da inclusão dos adolescentes pobres é muito difícil. A escolaridade deles é muito precária. Os alunos mais pobres na região metropolitana do Rio de Janeiro constituem 22% dos estudantes frequentando o ensino fundamental. No ensino médio, apenas 2% dos alunos pertencem ao estrato mais pobre. Há um fosso no acesso ao ensino médio. Isso faz com que algumas comunidades tentem se organizar, mas é difícil trabalhar com o pré-técnico comunitário. Percebemos que os cursos pré-técnicos começam, mas se encerram logo em seguida. Como já trabalhávamos desde 2004 com os pré-vestibulares, o que deu origem ao primeiro livro que lançamos – Cursos pré-vestibulares comunitários: espaços de mediações pedagógicas –, nos foi proposto que também apoiássemos os pré-técnicos comunitários. Procuramos os colegas do Senai e chamamos também coordenadores de cursos pré-técnicos comunitários. Agregamos pessoas que têm interesse e compromisso com a causa. Em nossa I Jornada Pedagógica, em 06 de setembro de 2008, surgiu a proposta de consolidar com outro livro os debates que realizamos. O intuito era apoiar, através de um curso de extensão universitária, o trabalho voluntário nas classes pré-técnicas comunitárias. Nesse meio tempo, apresentamos projetos de coparcerias ao Ministério do Trabalho e ao Ministério do Desenvolvimento Social. Por enquanto, todas as tentativas foram frustradas. Não conseguimos obter recursos para desenvolver um projeto-piloto de natureza pedagógica em dez comunidades.
Editora PUC-Rio: Qual é o projeto-piloto?
José Carmelo: Os especialistas do Senai e do Senac que hoje nos auxiliam perceberam, já há uma década, que os adolescentes chegavam a seus cursos de Aprendizagem e Qualificação apresentando sérias lacunas nos conteúdos do ensino fundamental. A tendência do professor da área técnica ou do ensino superior é dizer que o problema é da escola fundamental. Mas a equipe pedagógica do Senac e do Senai chamou a responsabilidade para si. Propuseram que professores de diferentes áreas temáticas – como física, química, matemática e redação – elaborassem um material pedagógico que levasse em conta a necessidade de consolidar, junto com o conteúdo de formação profissional, aquilo que é pré-requisito de uma formação básica fundamental. Trata-se de um curso que, com material didático bem desenvolvido, pode ser colocado na internet, para que todos os grupos comunitários possam utilizá-lo. Ao mesmo tempo, temos o sonho de que nosso grupo de trabalho de doze pessoas desapareça com o tempo e, no lugar dele, seja constituída uma rede associativa de universidades, ONGs e empresas em apoio às CCPTs.
Editora PUC-Rio: Como essa rede poderia ser construída?
José Carmelo: Tentamos instituir uma rede com um tripé de apoio, articulando as CCPTs às universidades e às empresas. Hoje, no Brasil, a universidade oferece três espaços possíveis para que se faça um trabalho comunitário: a prática docente, o estágio e as atividades educativas complementares, que podem ser desenvolvidas pelo graduando durante 500 horas/aula, através de projetos sob a coordenação de seu departamento. Na maioria dos departamentos da PUC-Rio, dessas 500 horas, 150 podem ser dedicadas ao trabalho comunitário. Então, uma das possibilidades de instituirmos a rede de apoio às classes comunitárias é através de graduandos. Além disso, aqui na PUC-Rio, cerca de 1.300 graduandos são alunos pobres, muitos deles vindos de comunidades. Quando criamos o nosso movimento e o chamamos de Raízes Comunitárias, foi nesse sentido: plantar as raízes da universidade nas comunidades pobres para que haja um diálogo entre os movimentos sociais comunitários e o saber acadêmico. Este é nosso desafio. É muito fácil fazer dialogar a academia com a grande empresa multinacional. Por que não fazer o mesmo em relação às comunidades, já que temos, na PUC-Rio, 10% dos alunos graduandos vindos do ProUni e de bolsas sociais?
Editora PUC-Rio: É mais difícil desenvolver pré-vestibulares ou pré-técnicos comunitários?
José Carmelo: É muito mais fácil trabalhar com pré-vestibular comunitário. Os alunos já têm 18 anos, têm maior responsabilidade e já passaram pelo ensino médio. Então, sabem o que querem. Enquanto isso, os adolescentes têm muitas dificuldades, porque estão cansados e descrentes. A escola que frequentaram é de baixa qualidade, sem um ambiente de integração. Esses jovens não têm previsão de ingresso no mercado de trabalho, porque não têm escolaridade nem qualificação profissional. São aliciados pelo narcotráfico, pelo jogo do bicho etc. É um ambiente difícil para se desenvolver um trabalho comunitário. Os pré-vestibulares têm um crescimento exponencial, enquanto os pré-técnicos apresentam um desenvolvimento muito pequeno. Há dificuldades para trabalhar com esses adolescentes revoltados e inseguros. Por outro lado, pode-se trabalhar com adultos já maduros, sabedores do que querem e responsáveis. Convencer os educadores voluntários sobre a necessidade de desenvolvermos as classes pré-técnicas comunitárias é um processo lento. Por enquanto, lançamos as sementes.
Editora PUC-Rio: Qual é o desempenho dos alunos de classes comunitárias nas provas para ingresso em escolas técnicas?
José Carmelo: Este é, para nós, um grande desafio. Como disse anteriormente, percebemos a exclusão dos alunos pobres do ensino médio. Dois cursos pré-técnicos comunitários – a Casa Perfeita Alegria, de Nilópolis, e Eu Penso no Futuro, do Rio Comprido – conseguem colocar no ensino técnico entre 15 e 20% de seus alunos. Isso é milagroso. É fantástico uma classe comunitária, feita na base do voluntariado, trabalhando nos fins de semana, em condições bastante precárias, alcançar essa taxa de aprovação no processo seletivo.
Editora PUC-Rio: Há projetos para os estudantes que não conseguem ter acesso ao ensino técnico?
José Carmelo: Muitos desses alunos entrarão diretamente na vida de trabalho. Nossa proposta é conciliar trabalho e estudo em cursos modulares. O aluno pode crescer de forma gradativa em uma capacitação profissional. Dessa maneira, não atingiremos apenas o segmento que tem acesso ao ensino técnico. Os outros alunos poderão articular a educação à noite, no supletivo, com a sua vida de trabalho. O livro Classes comunitárias pré-técnicas e pré-profissionais tem essa preocupação. Não estamos falando apenas do pré-técnico, que é o lado bem sucedido do acesso ao ensino médio técnico-profissional. Falamos também para aqueles que não conseguem ascender ao ensino técnico, mas que poderão, ao longo da sua vida profissional, realizar sua qualificação ocupacional como trabalhador-estudante.
Editora PUC-Rio: Quando surgiu seu interesse pelas classes comunitárias?
José Carmelo: Esse processo eclode em 1991, quando o mundo comemorou o Ano Internacional da Alfabetização. Lidávamos com estatísticas de alfabetização e sabíamos que o número de analfabetos no Brasil era muito maior do que o censo domiciliar do IBGE identificava. Nesse ano, começamos um trabalho pioneiro para dimensionar melhor diferentes níveis de alfabetização entre a população juvenil e adulta. Em 1996, desenvolvemos um material de apoio didático que fornecia respaldo técnico a professores que lidassem com diferentes níveis de alfabetização ou alfabetismo. Em 1998, a primeira-dama Ruth Cardoso convocou as universidades brasileiras para trabalhar nos cem municípios do Brasil que apresentavam os índices mais baixos de alfabetismo. Desde 1993, na PUC-Rio, havia classes de alfabetização de adultos. Mas faltava continuidade nesse trabalho. Percebemos o seguinte: por que fazer um trabalho no Nordeste e não ter, na PUC-Rio, algo mais sistemático? Nesse momento, criamos o Projeto Meio-dia. No horário do almoço, desenvolvemos três classes para trabalhadores da PUC-Rio: uma classe de alfabetização de adultos, depois uma de ensino fundamental e uma de ensino médio. A primeira turma do ensino médio se formou em 2002. Uma das coisas mais emocionantes da minha vida é ver colegas trabalhadores, que eram analfabetos, formando-se no ensino médio.
Editora PUC-Rio: Como o senhor começou a trabalhar com cursos pré-vestibulares?
José Carmelo: A PUC-Rio nunca admitiu que houvesse um pré-vestibular comunitário no campus, para não criar a impressão nos demais cursos comunitários de que estaria favorecendo os seus próprios pré-vestibulandos. Mas, a partir de 2001, o colégio Teresiano, o colégio de aplicação da PUC, passou a destinar 40 vagas para os alunos que tinham completado o ensino médio supletivo na PUC-Rio. Hoje, temos alunos que começaram o processo de alfabetização e estão fazendo pós-graduação. Outro dia na PUC-Rio, no período de inscrições, encontrei com uma jovem radiante que me disse: “Professor, acabei de fazer minha matrícula na PUC!”. Em outra ocasião, fui pagar o estacionamento e, ao meu lado, uma senhora falou: “Professor, o senhor não vai se lembrar de mim. Tudo começou naquela salinha lá das oficinas (onde eram ministradas aulas do Projeto Meio-dia)... Daqui a uma semana eu vou ter o meu diploma de enfermagem”. É emocionante.
Editora PUC-Rio: Quais são seus próximos projetos?
José Carmelo: Estou me aposentando, mas vou continuar enquanto puder. O próximo projeto é obter apoio do Ministério do Trabalho, do Ministério do Desenvolvimento Social ou de instituições particulares, o que, por enquanto, não conseguimos. A Associação dos Antigos Alunos da PUC-Rio transformou-se, há três anos, em Organização Civil de Interesse Público (OCIP), que é política e tecnicamente mais relevante do que uma ONG. A proposta atual é trabalhar com a Associação dos Antigos Alunos para dar respaldo a nossos projetos sociais. Na Casa Perfeita Alegria, em Nilópolis, realiza-se um trabalho magnífico e gasta-se mensalmente apenas R$800,00, o preço do telefone e do aluguel da casa em que funciona o curso. Apesar de o custo ser muito baixo, há meses em que não se consegue, na comunidade, levantar os recursos necessários. Repito: nosso sonho é constituir uma rede de apoio aos cursos pré-técnicos no plano pedagógico, através da formação docente de seus voluntários, e no plano financeiro, desenvolvendo coparcerias para captar recursos. Espero que isso se consolide.

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