domingo, 8 de fevereiro de 2009

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Rubem Alves

Meu tio Agenor descrevia o que acontecia na sua sala de aula, quando menino. O professor chamava os alunos, que recitavam o "ponto". O "ponto" era um assunto que o professor ditava e os alunos escreviam e tinham de decorar. Alguns pontos que tive de decorar: a Proclamação da República, os metais, os afluentes do rio Amazonas...Alguns decoravam o ponto e o repetiam de cabo a rabo. Outros gaguejavam e embaralhavam as coisas...

Terminada a argüição o professor tomava sua caixinha de rapé, inspirava o fumo em ambas as narinas e espirrava (naqueles tempos isso era elegante...). Satisfeito o seu desejo de orgasmos nasais, passava a chamar aqueles que não haviam decorado o ponto para o castigo de bolos de palmatória. Sua condição de professor lhe dava autoridade para fazer o que fazia.

No ginásio, tinha um professor que, ao entrar em sala, todos deviam ficar de pé, em posição de sentido, uns atrás dos outros, rigorosamente. O professor, então, "passava em revista a tropa", examinando todas as fileiras para verificar se todas as cabeças estavam umas atrás das outras. Qual era a função educacional desse procedimento? Nenhuma. Mas ele era professor e, dentro da sala de aula, tinha autoridade absoluta. Nenhum aluno jamais se atreveu a contestá-lo. Se o fizesse, sofreria uma punição.

Ele tinha autoridade, exercia sua autoridade, mesmo que nenhum aluno a reconhecesse internamente. Sua autoridade se impunha pelo medo! Assim é a autoridade por decreto: se impõe independentemente das pessoas sobre as quais é exercida. Mas há um outro sentido de autoridade: um poder interior que se impõe sem necessitar de palmatórias ou ferros, que vem de dentro e é reconhecido pelas pessoas por ele tocadas.

Eu estava no curso científico. Anunciaram que tería­mos um novo professor de literatura. Não gostávamos de literatura. Os professores, valendo-se de sua autoridade, nos obrigavam a coisas que detestávamos: análise sintática, resumos de livros, escolas literárias, provas. O novo professor, Leônidas Sobrinho Porto, entrou na sala sorridente e começou: "Temos dois problemas preliminares para resolver. Primeiro, essa caderneta onde deverei registrar sua presença. Quero dizer que todos vocês já têm 100% de presença. Se não quiserem assistir às minhas aulas, não precisam. Eu lhes darei presença. Segundo: as provas que vocês terão de fazer para passar de ano. Quero dizer que não haverá provas. Todos vocês já passaram de ano. Resolvidas essas duas questões preliminares irrelevantes, podemos nos dedicar ao que importa: literatura...".

Aí ele começou a falar coisas que nunca tínhamos ouvido. A literatura se encarnou nele. Ele ficou "possuí­do" e começou a viver as grandes obras literárias bem ali, na nossa frente. Não pediu que comprássemos livros ou que lêssemos. Sabia que não sabíamos ler; só sabíamos juntar letras... Não tínhamos o poder para surfar sobre as palavras. Se fôssemos ler, a leitura seria tão mal feita que acabaríamos por detestar o que líamos. E ele, possuído, ia tornando vivas as obras literárias. Ficamos seduzidos. Ninguém faltava às suas aulas. Ninguém falava. Ao ouvi-lo, éramos tocados por sua autoridade mansa e maravilhosa.

Como professor e funcionário de um colégio, tinha autoridade para nos obrigar. Mas sabia que há coisas que não podem ser feitas com a autoridade de fora. As coisas que têm a ver com a alma só podem ser feitas com a autoridade de dentro. Bachelard escreveu em algum lugar que só se convence despertando os sonhos fundamentais. O professor Leônidas nos fazia entrar no mundo dos sonhos. Não precisava valer-se da autoridade exterior. Sua autoridade brotava de dentro e nós a reconhecíamos.
* * *
A menina voltava de seu primeiro dia na escola. "Como é a professora?", perguntaram os pais. Respondeu com a precisão de quem havia percebido essências: "Ela grita!".

Rubem Alves é educador e escritor
rubem_alves@uol.com.br

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